quinta-feira, 30 de maio de 2013

Uma revolução, uma nova ordem

“E abertamente, votei o meu coração à terra grave e sofredora, e, muitas vezes, na noite sagrada, lhe prometi amá-la fielmente até à morte, sem receio, com o seu pesado fardo de fatalidade, e não desprezar nenhum dos seus enigmas. Assim me liguei a ela por meio de um vínculo mortal.”

Hölderlin
“A Morte de Empédocles”


Uma revolução, uma nova ordem - O Teatro do Absurdo

            O teatro com a sua visão elíptica conferiu à argumentação grandes meios de difusão, na sua imensa significação, aumentando a expansão do cinema e da televisão. A compreensão do teatro do absurdo, a que associamos o nome de Beckett e também de Albert Camus, Eugène Ionesco, Arthur Adamov, Harold Pinter, Jean Tardieu, Jean Genet, insurgente e no limiar da incompreensão, quando o seu espectro se tornou uma constante na dramaturgia, passa por compreender as mudanças ocorridas nas ciências, na psicologia, na filosofia. Há quem afirme que o teatro do Absurdo se serve de ideias exprimidas depois das primeiras décadas do século XX na literatura através da escrita metonímica de Joyce, o surrealismo, a ruptura interior de Kafka, ou da primeira década deste século com o cubismo, ou o abstraccionismo. É um teatro acusado, onde o novo é o périplo a seguir, reunindo várias formas tradicionais, muito antigas e altamente respeitáveis, da literatura e do teatro e no fim de contas, irrompendo como uma força ciclópica, exprimindo a situação actual do homem ocidental.
            Em 1957 estreou À Espera de Godot de Samuel Beckett. Beckett não tinha mostrado qualquer apreensão em como enfrentar o público com uma peça intelectual, eminentemente obscura e que quase provocou um choque entre os mais incautos. Um prisioneiro disse “Godot é a sociedade”; outro “É o mundo exterior”. Citam-se as reflexões de um professor da prisão. “Eles sabem o que significa a espera, e sabem que Godot não será mais do que uma decepção.” A grande recepção que esta peça teve na prisão de San Quentin foi causada talvez por os prisioneiros serem tão simples, isentos de ideias preconcebidas, evitando assim o erro de tantos críticos ao condenarem a peça pela sua tendência e intriga, psicologia, suspense ou senso comum. Portanto este teatro tem fins diferentes das peças convencionais e métodos muito distintos. É preciso salientar que os autores dramáticos não fazem partido de alguma escola ou movimento organizado. Ao contrário, cada um dos escritores em questão é um indivíduo que se considera um solitário, isolado no seu próprio mundo. As suas obras reflectem preocupações, emoções, ansiedades e o pensamento de um grande número de pensadores ocidentais. Mas as suas obras não são representativas do estado de espírito geral. O teatro do absurdo, no entanto pode ser considerado como o reflexo daquilo que parece ser a atitude mais comum da nossa época. O que distingue esta atitude é o sentimento que as certezas se mostram insuficientes, não são apodícticas, a alienação é regida pela ilusão sem valor e infantil. Ao fim da segunda guerra mundial, o declínio da fé religiosa foi mascarada por religiões de substituição, essas que fizeram no progresso, no nacionalismo e nas diferenças totalitárias o seu repto. Tudo foi pulverizado pela guerra. Em 1942 Albert Camus, com sangue frio, perguntou porque é que a vida tinha perdido todo o seu sentido? Numa das grandes e profundas introspecções do nosso tempo, O Mito de Sísifo- ensaio sobre o absurdo, Camus tenta fazer o diagnóstico de um mundo em que as crenças são destruídas. Mas ao contrário, num universo de repente privado de ilusões e de luz, o homem sente-se um estrangeiro. Este exílio transforma-se num exílio sem recursos, pois o homem é privado de recordações de uma pátria perdida ou de uma esperança de uma terra prometida. Este divórcio entre o homem e a sua vida, o actor e o seu cenário, é provavelmente o mote do absurdo.
            Na linguagem corrente, absurdo pode não significar mais que ridículo. Este não é o sentido que Camus utiliza, nem aquele que entendemos quando falamos do teatro do absurdo. Num ensaio sobre Kafka, Ionesco definiu a sua concepção. É absurdo o que não tem caminho. Despojado dos seus raciocínios religiosos ou metafísicos, o homem está perdido, tudo caminha insensivelmente. Este sentimento de ansiedade de metafísica face à absurdidade da condição humana é colocado em relevo nas peças de Beckett e Ionesco. Um sentimento de nonsense da vida, da inevitável depreciação dos ideais, que inspira também obras de autores dramáticos como Sartre e Camus. Estes escritores diferem portanto do teatro do absurdo sobre um ponto importante: eles expõem a irracionalidade da condição humana sob a forma de um raciocínio lúcido e logicamente construído, mas no teatro do absurdo o seu sentido demonstra o que a razão tem de inadequado, abandonando deliberadamente os caminhos racionais e o pensamento discursivo. O teatro do absurdo renunciou a argumentar a absurdidade da condição humana, ele mostra-a simplesmente na existência, quer dizer que as imagens concretas ilustram a absurdidade da existência. Ele visa uma depreciação radical da linguagem em proveito de uma poesia que surge das imagens de cenas concretas e discretas. O que se passa sob a cena ultrapassa e contradiz as palavras ditas pelas personagens. No “Les chaises” de Ionesco, por exemplo, a ideia poética não provém da poesia mesma da peça, nem das frases, mas do facto de que elas são ditas sempre defronte. O teatro do absurdo faz também partido do movimento “anti-literário” do nosso tempo, que trouxe a sua expressão na pintura abstracta, com a rejeição de elementos literários. Não é por coincidência que como todos os movimentos corolários, o teatro do absurdo teve o seu centro em Paris. O que não significa que seja essencialmente francês, porque Paris era um centro gerador de movimento moderno. Portanto veja-se como Picasso, Kadinsky, Chagall, Gertrude Stein, Hemingway, Joyce vieram dos quatro cantos do mundo para se reencontrarem em Paris e darem forma ao movimento moderno nas artes e na literatura. O teatro do absurdo nasceu da mesma tradição e absorveu-se dos mesmos recursos, um irlandês Samuel Beckett, um romeno Eugène Ionesco, um russo de origem americana, Arthur Adamov, trouxeram a Paris não somente a atmosfera que lhes permitia fazer livremente experiências, mas a ocasião também de verem as suas obras no teatro. Um ponto igualmente importante: Paris possuía um público de teatro particularmente inteligente, sensível, atento, também capaz de absorver ideias novas. A novidade do teatro do absurdo tem a combinação insólita dos seus antecedentes. Uma peça como a La Chantatrice Chauve de Ionesco não parece chocante e incompreensível ao espectador, que não admite como convenção teatral a convenção naturalista da narrativa.
            As tradições antigas que o teatro do absurdo utiliza em novas e variadas combinações, para exprimir os problemas e preocupações contemporâneas, podem ser exemplificadas por: o teatro puro, isto é os efeitos cénicos puros que são os do circo; as palhaçadas, as bufonarias e as cenas burlescas; o nonsense; a literatura dos sonhos e da imaginação, que têm um conteúdo alegórico. O elemento do teatro puro no teatro do absurdo é um aspecto da sua posição anti-literária e da sua recusa da linguagem. A acção estilizada, pura e ritualizada que construiu Genet, na proliferação do objecto em Ionesco, no gag inspirado no circo em “À espera de Godot”, no ballet e pantominas de Beckett e Ionesco, trouxe-nos um retorno às formas antigas e não verbais do teatro. As coisas escritas podem ser claras, mas o verdadeiro teatro não deve ser evidente na representação. A entrada dos toureadores na arena, o desfecho da abertura dos jogos olímpicos - todos estes exemplos contêm efeitos do teatro puro. Têm um sentido profundo, talvez metafísico e exprimem o que a linguagem não pode. “Homem, tu és um animal maravilhoso e tu prevês os últimos desígnios! Podes fazer coisas estranhas, mas tiras um pequeno partido.” É o estranho poder metafísico da representação teatral, concreta e hábil de que nos fala Nietzsche na Origem da Tragédia. O mito não traz de qualquer maneira, no seu discurso, a sua objectivação adequada. A sucessão de cenas e o espectáculo de quadro proclama uma sabedoria mais profunda, que aquela que é possível ao poeta, ele mesmo fazer, por meio de palavras e ideias. Aqui é a tradição do mimo ou o mimo da antiguidade, forma popular do teatro que coexiste com a tragédia e as comédias clássicas. A unidade de tempo e de lugar não é observada. Em vez de peças, onde a intriga está prevista, dão-se curtos espectáculos, sem qualquer intriga.
Mais tarde a preferência foi dada aos temas nascidos do sonho, nas intrigas fantásticas. Do que nos provém da literatura dramática antiga, só o teatro de Aristófanes contém a mesma liberdade de imaginação, a mesma mistura de fantasia e de comédia grosseira que caracteriza os mimos populares. Também o teatro popular improvisado, anti-literário, nos seus comentários da vida quotidiana, mostra-se também livre, irreverente e extravagante. As peças de Shakespeare são também ricas em razões paradoxais, em falsos silogismos, em associações verbais e em delírio poético, verdadeiro ou do mesmo tipo que nós encontramos nas peças de Ionesco ou Beckett. Não se trata de afirmar que estes escritores sejam comparados a Shakespeare, mas simplesmente assinalar que o fantástico e o incongruente partilham, em certos aspectos, a mesma tradição respeitável e geralmente admitida. Acima de tudo há em Shakespeare um sentido profundo da futilidade e absurdo da condição humana.
            Em pleno século XX, sobressaem as comédias de Charlie Chaplin, Buster Keaton e um rol de actores imortais. O género de gags e o tempo rápido rebuscado das comédias burlescas do cinema mudo são ligados às palhaçadas e danças acrobáticas do music-hall e da comédia musical. O filme mudo cómico tem, sem hesitação, uma influência decisiva no teatro do absurdo. Há a estranha atmosfera de sonho de um mundo visto pelo outro lado, por aquele que corta com a realidade e olha com olhos que não compreendem. Tem a qualidade do pesadelo e revela um mundo perpetuamente em mudança e sem caminho. A maneira de Jacques Tati está muito próxima do teatro do absurdo, particularmente no seu emprego de linguagem (emprega o diálogo como um murmúrio indistinto por detrás do plano) e pela sua utilização de um imaginário carregado de simbolismo, como nos exemplifica Há Festa na Aldeia. O absurdo trata da futilidade da existência humana, que só se pode conseguir através do amor e coragem. A coragem de assumir o absurdo da condição humana.
Há que abordar outra corrente na literatura que tem certas qualidades particulares - a literatura do nonsense. As canções infantis da maior parte dos países contêm um grande número de versos que partilham o nonsense. A literatura do nonsense exprime mais do que uma simples necessidade de se divertir. Tem também um sentido intrínseco em fazer explodir a linguagem. Ela ataca os limites da condição humana ela mesma. É precisamente o desejo de reter o homem ou de entender o som das palavras, que o homem não pronuncia, a razão de ser do nonsense. Isto pode explicar que um dos grandes mestres ingleses do nonsense tenha sido um matemático e lógico - Lewis Carrol. Este escritor fascinante oferece um material ilimitado para as investigações psicológicas, filosóficas e estéticas. No mundo de Lewis Carrol há criaturas que tentam evadir-se ao determinismo das ideias que não podemos evitar na realidade. Tal como diz Humty Dumpty - “Quando eu emprego uma palavra com um certo desdém, ela significa o que eu quero que signifique, nem mais nem menos”. “A questão é de saber, diz Alice, se você pode fazer com que as mesmas palavras signifiquem tantas coisas diferentes.” “A questão é de saber, diz Humty Dumpty, quem é o mestre - é tudo”. Esta possessão da significação das palavras vacila quando encontramos o inexprimível. O campo do nonsense, numa das passagens mais significativas de Alice do Outro Lado do Espelho, é a aventura de Alice no denso bosque onde as coisas não têm nome. Neste bosque Alice esquece o seu próprio nome. “E agora quem sou eu? Quero-me recordar! Estou decidida a fazê-lo!” Mas ela esqueceu-se do seu nome e também da sua identidade. Lewis Carrol dá a entender que perder o seu nome é de qualquer maneira ganhar a liberdade, porque o anonimato confere essa plenitude. Tal é sugerido através da perda da linguagem, que contribui para a harmonia com as coisas vistas. Por meio da destruição da linguagem, através do nonsense (o facto de dar às coisas um nome arbitrário) que se exprime, o poeta Lewis Carroll aspira a uma unidade mística com o universo. O nonsense produz um efeito de liberdade, repousando nos limites da razão, libertando o espírito da lógica e das convenções.
Uma outra tradição, que revemos no teatro do absurdo, é o modo de pensar mitológico, alegórico e onírico. A projecção em termos concretos de realidades psicológicas. Os mitos que são as imagens de sonhos colectivos da humanidade. Em literatura o sonho esteve sempre ligado aos elementos alegóricos e o pensamento simbólico sempre foi uma das suas características. Se o mundo é um teatro e se o teatro apresenta os sonhos, ele é um sonho num sonho. Na literatura dramática o motivo do sonho fez assim a sua aparição. Por exemplo, Goethe aventura-se num verdadeiro mundo do sonho, nas duas cenas na noite de Walpurgis do Fausto, onde assistimos à passagem da realidade objectiva do mundo exterior à realidade subjectiva da consciência. Os romances de Kafka são, também, descrições meticulosamente exactas de pesadelos e de obsessões, de ansiedade e do sentimento de culpa de um homem plenamente sensível, perdido num mundo de convenção e de rotina. O Processo foi uma das primeiras obras a dar uma plena imagem contemporânea do teatro do absurdo, alimentando a narrativa de Beckett e Ionesco.
Quando Zaratustra desceu das suas montanhas para trazer os seus ensinamentos à humanidade, ele encontrou na floresta um santo eremita. O ancião convidou-o a demorar-se na solidão, mais do que ir para o país dos homens. Quando Zaratustra perguntou ao ancião como é que ele passava o tempo em solidão, este respondeu-lhe: “-Eu componho cantos e depois canto-os, e quando faço essas canções eu rio, eu choro, eu murmuro, é assim que louvo a Deus.” Zaratustra recusou a oferta do ancião e continuou a sua viagem: mas quando ficou só ele falou também ao seu coração. “Será isto possível! Este velho santo na sua floresta não entendeu outra vez que Deus está morto!” Assim Falava Zaratustra de Nietzsche foi publicado pela primeira vez em 1883. Depois de duas guerras terríveis foram numerosos aqueles que tentaram uma interpretação na mensagem de Zaratustra, e procuraram enfrentar um universo privado, que foi o epicentro da vida e ao mesmo tempo destituído de sentido. O teatro do absurdo é uma das expressões desta procura. Exprimindo um sentimento trágico perante o desaparecimento de certezas fundamentais, o teatro do absurdo, por um estranho paradoxo, é igualmente um sintoma da nossa época, próximo de uma autêntica procura religiosa, de um esforço, talvez tímido e hesitante, de cantar, de rir, de chorar e murmurar. Se não é para louvar Deus, ao menos para procurar uma dimensão inefável, um esforço destinado em tornar o homem consciente das realidades essenciais da sua condição, em instalar novamente o sentido perdido do mistério universal e da primeira angústia.
O teatro do absurdo faz parte do esforço incessante dos artistas em lutarem contra essa fenda, que corrói este muro de falso optimismo e de automatismo, devolvendo uma consciência da situação do homem confrontada com as realidades essenciais da sua condição. É aqui que o homem encontra o seu norte. Tanto que o teatro do absurdo propõe um duplo objectivo e coloca o seu público em face de uma dupla absurdidade. Por um lado ele fustiga satiricamente o absurdo da vida conduzida sem lucidez e sem consciência. Por outro, a sensação de torpor e de estupidificação mecânica, que procura uma existência no meio consciente: “os homens segregam o inumano”, como afirmou Camus no Mito de Sísifo. Este malogro perante a inumanidade do homem mesmo, esta incalculável queda, a culpa em frente da imagem que nós somos, esta náusea, como Jean-Paul Sartre a denomina, é também o absurdo. O aspecto satírico e paródico do teatro do absurdo, a sua crítica social, a queda de uma sociedade inautêntica e mesquinha são talvez os temas mais apreciados no teatro do absurdo, mas estão longe de ser o seu aspecto mais significativo. Para além da sua sátira ao absurdo do modus vivendi, o teatro do absurdo põe a nu a nossa maior fragilidade. O absurdo da condição humana, ela mesma, num mundo onde o declínio da fé religiosa privou o homem de toda a certeza. Quando não é possível aceitar os sistemas de valores de maneira simples e completa, a vida deve ser vista em face da sua realidade essencial. O homem confrontado com o tempo, num constante limbo entre a vida e a morte. É esta inadequação existencial que vem à superfície com Beckett. Nesta preocupação das realidades essenciais da condição humana, das quais os problemas fundamentais da vida e da morte, do isolamento e da comunicação, o teatro do absurdo pode parecer frívolo e irreverente, mas representa um retorno à função religiosa e original do teatro. A confrontação do homem com o mundo dos mitos e da realidade religiosa.
O teatro do absurdo não pretende explicar as diferenças entre Deus e o Homem. Ele apresenta simplesmente, com angústia, a intuição, que um determinado indivíduo tem relativamente às realidades essenciais que experimentou. O teatro do absurdo comunica, simplesmente, a intuição íntima e muito pessoal que tem o poeta na situação humana, o seu próprio sentimento de ser, a sua visão do mundo. É um teatro de situações que se opõe a um teatro de acontecimentos sucessivos e por esta razão ele emprega uma linguagem baseada em imagens concretas mais do que em argumentos e razões. Para dar um exemplo: as coisas chegam em “À espera de Godot”, mas estes acontecimentos não constituem nem uma intriga, nem uma história, são sim a imagem do sentimento de Beckett, que nunca nada é suficiente na existência do homem. Toda a peça é uma imagem poética e complexa feita de um desenho complicado de imagens e de temas subsidiários, que se entrelaçam como os temas de uma composição musical, para produzir no espírito do espectador uma impressão total e intricada de uma situação fundamental. O teatro do absurdo, ao transpor as necessidades poéticas no imaginário concreto da cena, pode ir mais longe que a pura poesia na rejeição da lógica, do pensamento discursivo e da linguagem. A cena é um vislumbrar de múltiplas dimensões, que permitem o emprego simultâneo de elementos visuais, do movimento, da luz e da linguagem. Este percurso estético trouxe a liberdade de utilizar a linguagem como um simples elemento. Talvez a subordinação ao seu imaginário poético de dimensão múltipla. O subconsciente contém mais realidade que a afirmação consciente.
O carácter relativo da linguagem, a sua desvalorização e a sua crítica são também tendências dominantes da filosofia contemporânea, onde a convicção que exprime Wittgenstein na última fase do seu pensamento é um exemplo. Para ele, o filósofo deve evidenciar o seu pensamento com conexões e regras da gramática que foram erradamente misturadas com as regras da lógica. O “jogo da linguagem” de Wittgenstein tem pontos em comum com o teatro do absurdo. Mas mais significativo que as próprias tendências é a mentalidade do homem. Submetido à lógica inexorável, à tagarelice incessante dos mass media, o homem anódino torna-se cada vez mais céptico com este excesso de linguagem. Os cidadãos dos países totalitários sabem bem que aquilo que lhes disseram não é destituído de sentido real. Eles habituaram-se a ler nas entrelinhas, quer dizer a trazer à realidade o que a linguagem apreende, mas que não revela. É por isso que a comunicação entre os seres humanos é sempre mostrada sob um aspecto de ineficácia no teatro do absurdo. É preciso reduzir a linguagem à sua verdadeira função. Exprimir um conteúdo verdadeiro, mais que procurá-lo. No teatro do absurdo apresentamos ao público as personagens onde os móbiles e os actos são em grande parte incompreensíveis. Com tais personagens é quase impossível de se identificar. As personagens com as quais o público não se pode identificar são inevitavelmente cómicas. Este teatro repõe a comédia ou a tragédia e combina o rir com o horror. As desventuras das personagens, como nós as vemos com um olho frio, crítico, sem nos identificarmos com elas, são cómicas. As personagens idiotas, que agem de uma maneira incongruente, querem ser sempre objecto de riso no circo, no music hall, no teatro. Mas estas personagens cómicas aparecem geralmente num quadro racional, envoltas de uma personalidade sensível com as quais o público se pode identificar. No teatro do absurdo a totalidade da acção é misteriosa, não motivada e à primeira vista, parecendo-se com o nonsense. Aqui o espectador é confrontado com a loucura da condição humana, ele é obrigado a ver a sua própria situação na sua desolação e desespero. Tal é a natureza de toda a literatura de humor negro, onde o teatro do absurdo é o último exemplo. É o mal causado pela presença de ilusões que não têm qualquer correspondência com a realidade, realidade que se dissolve e desaparece na gargalhada libertina, que logo reconhece a insensatez do universo. O teatro do absurdo nasceu essencialmente com a evocação de imagens poéticas concretas, que deviam comunicar ao público o sentimento de perplexidade dos seus autores confrontados com a condição humana. Podemos julgar o sucesso das suas obras com o grau com que eles conseguiram comunicar o seu misto de poesia, de grotesco e de horror tragicómico. Os critérios de perfeição não têm somente a qualidade de invenção, na sua complexidade de imagens poéticas seleccionadas e adaptadas, mas também, e essencialmente, a possibilidade de encarnar na visão dessas imagens a realidade e a verdade. A liberdade de invenção, da espontaneidade no teatro do absurdo, tem por objectivo comunicar uma experiência real, tentando ser honesto e descomprometido ao expor corajosamente a realidade da condição humana. Ao se aproximar de uma verdade metafísica, o teatro do absurdo aproxima-se então do domínio metafísico e do domínio religioso.
Em última análise, um fenómeno como o teatro do absurdo não reflecte o desespero nem um retorno às forças obscuras do irracional, mas exprime os esforços do homem moderno em se adaptar ao mundo onde ele vive. Ele tende a confrontar-se com a condição humana, obrigando-o a libertar-se de ilusões que, inevitavelmente, o conduzem a ser constantemente inadaptado. Há no nosso mundo pressões consideráveis para levar a humanidade a suportar o dogma religioso e moral, propondo-lhe esquecer, recorrendo, de forma iníqua, a espectáculos medíocres de satisfação imediata, teorizações e axiologias da realidade que alimentam, paulatinamente, o homem. Nos nossos dias, em que a morte e o envelhecimento são cada vez mais escamoteados, o auxílio ao eufemismo e ao conforto infantis são uma constante, por isso ouvimos, às vezes distante, o grito do homem no sopé da montanha, o grito desnorteado. Ele exige reflexão para encontrar o seu centro, sem ilusões e rindo. E é sem receios, quase de forma donquixotista, que os autores do absurdo se lançam inesperadamente.



Sofia Amaro © All rights reserved

Sem comentários:

Enviar um comentário