sábado, 6 de novembro de 2010

O sacristão Josué, Luze-cu seu sobrenome, às 6 da manhã já martelava os toscos compassos das partituras fingidas nos carrilhões da catedral. Nem escala, nem colcheias lhe sobraram da infância vivida entre cegonhas e badalos. Deitado na pedra e as mãos espalmadas, cantava no repicar dos sinos às terras do demo e punha os olhos em alcalá. Sabia distinguir de uma maneira ou de outra o trigo do joio, com a vista tão rasgada como tinha. Olhos de perdiz que viam o que se passava num raio de dez quilómetros.
A torre onde o dito sacristão vivia perfurava as nuvens com os seus duzentos pés de altitude, tão alta que de baixo não se lhe descobria o fim, um fim que parecia estar apagado pelo tecido da montanha. E do cimo, bem lá do cimo, vislumbrava-se a queda vertiginosa do céu ou da lua.


Breves sonos na aldeia sombria, de boca fechada à luz num bojo cinzento, como a densidade do nevoeiro em terras bretãs, porém os rostos sem luz, sem a profundidade de um segredo há muito desaparecido na regra universal, na risível lei moral, porque atribuída por uma população com menos de mil habitantes e um em cada metro quadrado a pensar nas léguas de Deus – sempre com a condição de ninguém ficar impune ao crime que cala e apaga o homem. Cada acto escondido entre paredes ou apagado pelo dízimo. Num dia compensava o crime, noutro acendiam-se círios perto do confessionário.

in "O Umbigo de Deus"