sábado, 1 de junho de 2013
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«Ne m’écris pas de façon trop vague, n’hésite pas à me dire que le rideau de notre fenêtre a de nouveau brûlé et que les gens nous regardent de la rue.» Nous sommes en 1951 - la troisième année d’un échange épistolaire qui s’étendra sur presque vingt ans - lorsque l’étudiante autrichienne Ingeborg Bachmann adresse ces mots au poète Paul Celan.
http://www.magazine-litteraire.com/critique/non-fiction/temps-du-coeur-correspondance-ingeborg-bachmann-paul-celan-31-10-2011-31607#.TrcHlbkdIlc.facebook
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sonhei com gigantes, facas e alguidares, fisgas e bolas de pêlo, unhas partidas, arrancadas, homens esquálidos a observarem-me, cães a atiçarem a fome. acordei. uma simples razão: rins, antibióticos, água, chá. e transformei-me, de repente, num invólucro de líquido amniótico, protegida das dores e do sonambulismo febril que assolavam os meus dias e as minhas noites.-
quinta-feira, 30 de maio de 2013
"o teu amor atormenta-me porque não serve de ponte, uma ponte não se sustém apenas de um lado, Lloyd Wright e Le Corbusier jamais farão uma ponte suspensa apenas de um lado, e não olhes para mim com esses olhos de pássaro, para ti a operação de amar é tão simples, vais-te curar antes de mim, tu que me amas como eu não te amo."
Julio Cortázar in Rayuela
Uma revolução, uma nova ordem
“E abertamente, votei o meu coração à terra grave e
sofredora, e, muitas vezes, na noite sagrada, lhe prometi amá-la fielmente até
à morte, sem receio, com o seu pesado fardo de fatalidade, e não desprezar
nenhum dos seus enigmas. Assim me liguei a ela por meio de um vínculo mortal.”
Hölderlin
“A Morte de
Empédocles”
Uma revolução, uma nova ordem - O Teatro do Absurdo
O teatro com a sua visão elíptica
conferiu à argumentação grandes meios de difusão, na sua imensa significação,
aumentando a expansão do cinema e da televisão. A compreensão do teatro do
absurdo, a que associamos o nome de Beckett e também de Albert Camus, Eugène
Ionesco, Arthur Adamov, Harold Pinter, Jean Tardieu, Jean Genet, insurgente e
no limiar da incompreensão, quando o seu espectro se tornou uma constante na
dramaturgia, passa por compreender as mudanças ocorridas nas ciências, na
psicologia, na filosofia. Há quem afirme que o teatro do Absurdo se serve de
ideias exprimidas depois das primeiras décadas do século XX na literatura
através da escrita metonímica de Joyce, o surrealismo, a ruptura interior de
Kafka, ou da primeira década deste século com o cubismo, ou o abstraccionismo.
É um teatro acusado, onde o novo é o périplo a seguir, reunindo várias formas
tradicionais, muito antigas e altamente respeitáveis, da literatura e do teatro
e no fim de contas, irrompendo como uma força ciclópica, exprimindo a situação
actual do homem ocidental.
Em 1957 estreou À Espera de Godot de
Samuel Beckett. Beckett não tinha mostrado qualquer apreensão em como enfrentar
o público com uma peça intelectual, eminentemente obscura e que quase provocou
um choque entre os mais incautos. Um prisioneiro disse “Godot é a sociedade”;
outro “É o mundo exterior”. Citam-se as reflexões de um professor da prisão.
“Eles sabem o que significa a espera, e sabem que Godot não será mais do que
uma decepção.” A grande recepção que esta peça teve na prisão de San Quentin
foi causada talvez por os prisioneiros serem tão simples, isentos de ideias
preconcebidas, evitando assim o erro de tantos críticos ao condenarem a peça
pela sua tendência e intriga, psicologia, suspense ou senso comum. Portanto
este teatro tem fins diferentes das peças convencionais e métodos muito distintos.
É preciso salientar que os autores dramáticos não fazem partido de alguma
escola ou movimento organizado. Ao contrário, cada um dos escritores em questão
é um indivíduo que se considera um solitário, isolado no seu próprio mundo. As
suas obras reflectem preocupações, emoções, ansiedades e o pensamento de um
grande número de pensadores ocidentais. Mas as suas obras não são
representativas do estado de espírito geral. O teatro do absurdo, no entanto
pode ser considerado como o reflexo daquilo que parece ser a atitude mais comum
da nossa época. O que distingue esta atitude é o sentimento que as certezas se
mostram insuficientes, não são apodícticas, a alienação é regida pela ilusão
sem valor e infantil. Ao fim da segunda guerra mundial, o declínio da fé
religiosa foi mascarada por religiões de substituição, essas que fizeram no
progresso, no nacionalismo e nas diferenças totalitárias o seu repto. Tudo foi
pulverizado pela guerra. Em 1942 Albert Camus, com sangue frio, perguntou
porque é que a vida tinha perdido todo o seu sentido? Numa das grandes e
profundas introspecções do nosso tempo, O Mito de Sísifo- ensaio sobre o
absurdo, Camus tenta fazer o diagnóstico de um mundo em que as crenças são
destruídas. Mas ao contrário, num universo de repente privado de ilusões e de
luz, o homem sente-se um estrangeiro. Este exílio transforma-se num exílio sem
recursos, pois o homem é privado de recordações de uma pátria perdida ou de uma
esperança de uma terra prometida. Este divórcio entre o homem e a sua vida, o
actor e o seu cenário, é provavelmente o mote do absurdo.
Na linguagem corrente, absurdo pode
não significar mais que ridículo. Este não é o sentido que Camus utiliza, nem
aquele que entendemos quando falamos do teatro do absurdo. Num ensaio sobre
Kafka, Ionesco definiu a sua concepção. É absurdo o que não tem caminho.
Despojado dos seus raciocínios religiosos ou metafísicos, o homem está perdido,
tudo caminha insensivelmente. Este sentimento de ansiedade de metafísica face à
absurdidade da condição humana é colocado em relevo nas peças de Beckett e
Ionesco. Um sentimento de nonsense da vida, da inevitável depreciação dos
ideais, que inspira também obras de autores dramáticos como Sartre e Camus.
Estes escritores diferem portanto do teatro do absurdo sobre um ponto
importante: eles expõem a irracionalidade da condição humana sob a forma de um
raciocínio lúcido e logicamente construído, mas no teatro do absurdo o seu
sentido demonstra o que a razão tem de inadequado, abandonando deliberadamente
os caminhos racionais e o pensamento discursivo. O teatro do absurdo renunciou
a argumentar a absurdidade da condição humana, ele mostra-a simplesmente na
existência, quer dizer que as imagens concretas ilustram a absurdidade da
existência. Ele visa uma depreciação radical da linguagem em proveito de uma
poesia que surge das imagens de cenas concretas e discretas. O que se passa sob
a cena ultrapassa e contradiz as palavras ditas pelas personagens. No “Les
chaises” de Ionesco, por exemplo, a ideia poética não provém da poesia mesma da
peça, nem das frases, mas do facto de que elas são ditas sempre defronte. O
teatro do absurdo faz também partido do movimento “anti-literário” do nosso
tempo, que trouxe a sua expressão na pintura abstracta, com a rejeição de elementos
literários. Não é por coincidência que como todos os movimentos corolários, o
teatro do absurdo teve o seu centro em Paris. O que não significa que seja
essencialmente francês, porque Paris era um centro gerador de movimento
moderno. Portanto veja-se como Picasso, Kadinsky, Chagall, Gertrude Stein,
Hemingway, Joyce vieram dos quatro cantos do mundo para se reencontrarem em
Paris e darem forma ao movimento moderno nas artes e na literatura. O teatro do
absurdo nasceu da mesma tradição e absorveu-se dos mesmos recursos, um irlandês
Samuel Beckett, um romeno Eugène Ionesco, um russo de origem americana, Arthur
Adamov, trouxeram a Paris não somente a atmosfera que lhes permitia fazer
livremente experiências, mas a ocasião também de verem as suas obras no teatro.
Um ponto igualmente importante: Paris possuía um público de teatro
particularmente inteligente, sensível, atento, também capaz de absorver ideias
novas. A novidade do teatro do absurdo tem a combinação insólita dos seus
antecedentes. Uma peça como a La Chantatrice Chauve de Ionesco não parece
chocante e incompreensível ao espectador, que não admite como convenção teatral
a convenção naturalista da narrativa.
As tradições antigas que o teatro do
absurdo utiliza em novas e variadas combinações, para exprimir os problemas e
preocupações contemporâneas, podem ser exemplificadas por: o teatro puro, isto
é os efeitos cénicos puros que são os do circo; as palhaçadas, as bufonarias e
as cenas burlescas; o nonsense; a literatura dos sonhos e da imaginação, que
têm um conteúdo alegórico. O elemento do teatro puro no teatro do absurdo é um
aspecto da sua posição anti-literária e da sua recusa da linguagem. A acção
estilizada, pura e ritualizada que construiu Genet, na proliferação do objecto
em Ionesco, no gag inspirado no circo em “À espera de Godot”, no ballet e
pantominas de Beckett e Ionesco, trouxe-nos um retorno às formas antigas e não
verbais do teatro. As coisas escritas podem ser claras, mas o verdadeiro teatro
não deve ser evidente na representação. A entrada dos toureadores na arena, o
desfecho da abertura dos jogos olímpicos - todos estes exemplos contêm efeitos
do teatro puro. Têm um sentido profundo, talvez metafísico e exprimem o que a
linguagem não pode. “Homem, tu és um animal maravilhoso e tu prevês os últimos
desígnios! Podes fazer coisas estranhas, mas tiras um pequeno partido.” É o
estranho poder metafísico da representação teatral, concreta e hábil de que nos
fala Nietzsche na Origem da Tragédia. O mito não traz de qualquer maneira, no
seu discurso, a sua objectivação adequada. A sucessão de cenas e o espectáculo
de quadro proclama uma sabedoria mais profunda, que aquela que é possível ao
poeta, ele mesmo fazer, por meio de palavras e ideias. Aqui é a tradição do
mimo ou o mimo da antiguidade, forma popular do teatro que coexiste com a
tragédia e as comédias clássicas. A unidade de tempo e de lugar não é
observada. Em vez de peças, onde a intriga está prevista, dão-se curtos
espectáculos, sem qualquer intriga.
Mais tarde a preferência foi dada aos temas nascidos do sonho, nas intrigas
fantásticas. Do que nos provém da literatura dramática antiga, só o teatro de
Aristófanes contém a mesma liberdade de imaginação, a mesma mistura de fantasia
e de comédia grosseira que caracteriza os mimos populares. Também o teatro
popular improvisado, anti-literário, nos seus comentários da vida quotidiana,
mostra-se também livre, irreverente e extravagante. As peças de Shakespeare são
também ricas em razões paradoxais, em falsos silogismos, em associações verbais
e em delírio poético, verdadeiro ou do mesmo tipo que nós encontramos nas peças
de Ionesco ou Beckett. Não se trata de afirmar que estes escritores sejam
comparados a Shakespeare, mas simplesmente assinalar que o fantástico e o
incongruente partilham, em certos aspectos, a mesma tradição respeitável e
geralmente admitida. Acima de tudo há em Shakespeare um sentido profundo da
futilidade e absurdo da condição humana.
Em pleno século XX,
sobressaem as comédias de Charlie Chaplin, Buster Keaton e um rol de actores
imortais. O género de gags e o tempo rápido rebuscado das comédias burlescas do
cinema mudo são ligados às palhaçadas e danças acrobáticas do music-hall e da
comédia musical. O filme mudo cómico tem, sem hesitação, uma influência
decisiva no teatro do absurdo. Há a estranha atmosfera de sonho de um mundo
visto pelo outro lado, por aquele que corta com a realidade e olha com olhos
que não compreendem. Tem a qualidade do pesadelo e revela um mundo
perpetuamente em mudança e sem caminho. A maneira de Jacques Tati está muito
próxima do teatro do absurdo, particularmente no seu emprego de linguagem
(emprega o diálogo como um murmúrio indistinto por detrás do plano) e pela sua
utilização de um imaginário carregado de simbolismo, como nos exemplifica Há
Festa na Aldeia. O absurdo trata da futilidade da existência humana, que só se
pode conseguir através do amor e coragem. A coragem de assumir o absurdo da
condição humana.
Há que abordar outra corrente na literatura que tem certas qualidades
particulares - a literatura do nonsense. As canções infantis da maior parte dos
países contêm um grande número de versos que partilham o nonsense. A literatura
do nonsense exprime mais do que uma simples necessidade de se divertir. Tem
também um sentido intrínseco em fazer explodir a linguagem. Ela ataca os
limites da condição humana ela mesma. É precisamente o desejo de reter o homem
ou de entender o som das palavras, que o homem não pronuncia, a razão de ser do
nonsense. Isto pode explicar que um dos grandes mestres ingleses do nonsense
tenha sido um matemático e lógico - Lewis Carrol. Este escritor fascinante
oferece um material ilimitado para as investigações psicológicas, filosóficas e
estéticas. No mundo de Lewis Carrol há criaturas que tentam evadir-se ao
determinismo das ideias que não podemos evitar na realidade. Tal como diz Humty
Dumpty - “Quando eu emprego uma palavra com um certo desdém, ela significa o
que eu quero que signifique, nem mais nem menos”. “A questão é de saber, diz
Alice, se você pode fazer com que as mesmas palavras signifiquem tantas coisas
diferentes.” “A questão é de saber, diz Humty Dumpty, quem é o mestre - é
tudo”. Esta possessão da significação das palavras vacila quando encontramos o
inexprimível. O campo do nonsense, numa das passagens mais significativas de
Alice do Outro Lado do Espelho, é a aventura de Alice no denso bosque onde as
coisas não têm nome. Neste bosque Alice esquece o seu próprio nome. “E agora
quem sou eu? Quero-me recordar! Estou decidida a fazê-lo!” Mas ela esqueceu-se
do seu nome e também da sua identidade. Lewis Carrol dá a entender que perder o
seu nome é de qualquer maneira ganhar a liberdade, porque o anonimato confere
essa plenitude. Tal é sugerido através da perda da linguagem, que contribui
para a harmonia com as coisas vistas. Por meio da destruição da linguagem,
através do nonsense (o facto de dar às coisas um nome arbitrário) que se
exprime, o poeta Lewis Carroll aspira a uma unidade mística com o universo. O
nonsense produz um efeito de liberdade, repousando nos limites da razão,
libertando o espírito da lógica e das convenções.
Uma outra tradição, que revemos no teatro do absurdo, é o modo de pensar
mitológico, alegórico e onírico. A projecção em termos concretos de realidades
psicológicas. Os mitos que são as imagens de sonhos colectivos da humanidade.
Em literatura o sonho esteve sempre ligado aos elementos alegóricos e o
pensamento simbólico sempre foi uma das suas características. Se o mundo é um
teatro e se o teatro apresenta os sonhos, ele é um sonho num sonho. Na
literatura dramática o motivo do sonho fez assim a sua aparição. Por exemplo,
Goethe aventura-se num verdadeiro mundo do sonho, nas duas cenas na noite de Walpurgis
do Fausto, onde assistimos à passagem da realidade objectiva do mundo exterior
à realidade subjectiva da consciência. Os romances de Kafka são, também, descrições
meticulosamente exactas de pesadelos e de obsessões, de ansiedade e do
sentimento de culpa de um homem plenamente sensível, perdido num mundo de
convenção e de rotina. O Processo foi uma das primeiras obras a dar uma plena
imagem contemporânea do teatro do absurdo, alimentando a narrativa de Beckett e
Ionesco.
Quando Zaratustra desceu das suas montanhas para trazer os seus
ensinamentos à humanidade, ele encontrou na floresta um santo eremita. O ancião
convidou-o a demorar-se na solidão, mais do que ir para o país dos homens.
Quando Zaratustra perguntou ao ancião como é que ele passava o tempo em
solidão, este respondeu-lhe: “-Eu componho cantos e depois canto-os, e quando
faço essas canções eu rio, eu choro, eu murmuro, é assim que louvo a Deus.”
Zaratustra recusou a oferta do ancião e continuou a sua viagem: mas quando
ficou só ele falou também ao seu coração. “Será isto possível! Este velho santo
na sua floresta não entendeu outra vez que Deus está morto!” Assim Falava
Zaratustra de Nietzsche foi publicado pela primeira vez em 1883. Depois de duas
guerras terríveis foram numerosos aqueles que tentaram uma interpretação na
mensagem de Zaratustra, e procuraram enfrentar um universo privado, que foi o
epicentro da vida e ao mesmo tempo destituído de sentido. O teatro do absurdo é
uma das expressões desta procura. Exprimindo um sentimento trágico perante o
desaparecimento de certezas fundamentais, o teatro do absurdo, por um estranho
paradoxo, é igualmente um sintoma da nossa época, próximo de uma autêntica
procura religiosa, de um esforço, talvez tímido e hesitante, de cantar, de rir,
de chorar e murmurar. Se não é para louvar Deus, ao menos para procurar uma
dimensão inefável, um esforço destinado em tornar o homem consciente das
realidades essenciais da sua condição, em instalar novamente o sentido perdido
do mistério universal e da primeira angústia.
O teatro do absurdo faz parte do esforço incessante dos artistas em lutarem
contra essa fenda, que corrói este muro de falso optimismo e de automatismo,
devolvendo uma consciência da situação do homem confrontada com as realidades
essenciais da sua condição. É aqui que o homem encontra o seu norte. Tanto que
o teatro do absurdo propõe um duplo objectivo e coloca o seu público em face de
uma dupla absurdidade. Por um lado ele fustiga satiricamente o absurdo da vida
conduzida sem lucidez e sem consciência. Por outro, a sensação de torpor e de
estupidificação mecânica, que procura uma existência no meio consciente: “os
homens segregam o inumano”, como afirmou Camus no Mito de Sísifo. Este malogro
perante a inumanidade do homem mesmo, esta incalculável queda, a culpa em
frente da imagem que nós somos, esta náusea, como Jean-Paul Sartre a denomina,
é também o absurdo. O aspecto satírico e paródico do teatro do absurdo, a sua
crítica social, a queda de uma sociedade inautêntica e mesquinha são talvez os
temas mais apreciados no teatro do absurdo, mas estão longe de ser o seu
aspecto mais significativo. Para além da sua sátira ao absurdo do modus vivendi, o teatro do absurdo põe a
nu a nossa maior fragilidade. O absurdo da condição humana, ela mesma, num mundo
onde o declínio da fé religiosa privou o homem de toda a certeza. Quando não é
possível aceitar os sistemas de valores de maneira simples e completa, a vida
deve ser vista em face da sua realidade essencial. O homem confrontado com o
tempo, num constante limbo entre a vida e a morte. É esta inadequação
existencial que vem à superfície com Beckett. Nesta preocupação das realidades
essenciais da condição humana, das quais os problemas fundamentais da vida e da
morte, do isolamento e da comunicação, o teatro do absurdo pode parecer frívolo
e irreverente, mas representa um retorno à função religiosa e original do
teatro. A confrontação do homem com o mundo dos mitos e da realidade religiosa.
O teatro do absurdo não pretende explicar as diferenças entre Deus e o
Homem. Ele apresenta simplesmente, com angústia, a intuição, que um determinado
indivíduo tem relativamente às realidades essenciais que experimentou. O teatro
do absurdo comunica, simplesmente, a intuição íntima e muito pessoal que tem o
poeta na situação humana, o seu próprio sentimento de ser, a sua visão do
mundo. É um teatro de situações que se opõe a um teatro de acontecimentos
sucessivos e por esta razão ele emprega uma linguagem baseada em imagens
concretas mais do que em argumentos e razões. Para dar um exemplo: as coisas
chegam em “À espera de Godot”, mas estes acontecimentos não constituem nem uma
intriga, nem uma história, são sim a imagem do sentimento de Beckett, que nunca
nada é suficiente na existência do homem. Toda a peça é uma imagem poética e
complexa feita de um desenho complicado de imagens e de temas subsidiários, que
se entrelaçam como os temas de uma composição musical, para produzir no
espírito do espectador uma impressão total e intricada de uma situação
fundamental. O teatro do absurdo, ao transpor as necessidades poéticas no
imaginário concreto da cena, pode ir mais longe que a pura poesia na rejeição
da lógica, do pensamento discursivo e da linguagem. A cena é um vislumbrar de
múltiplas dimensões, que permitem o emprego simultâneo de elementos visuais, do
movimento, da luz e da linguagem. Este percurso estético trouxe a liberdade de
utilizar a linguagem como um simples elemento. Talvez a subordinação ao seu
imaginário poético de dimensão múltipla. O subconsciente contém mais realidade
que a afirmação consciente.
O carácter relativo da linguagem, a sua desvalorização e a sua crítica são
também tendências dominantes da filosofia contemporânea, onde a convicção que
exprime Wittgenstein na última fase do seu pensamento é um exemplo. Para ele, o
filósofo deve evidenciar o seu pensamento com conexões e regras da gramática
que foram erradamente misturadas com as regras da lógica. O “jogo da linguagem”
de Wittgenstein tem pontos em comum com o teatro do absurdo. Mas mais
significativo que as próprias tendências é a mentalidade do homem. Submetido à
lógica inexorável, à tagarelice incessante dos mass media, o homem anódino
torna-se cada vez mais céptico com este excesso de linguagem. Os cidadãos dos
países totalitários sabem bem que aquilo que lhes disseram não é destituído de
sentido real. Eles habituaram-se a ler nas entrelinhas, quer dizer a trazer à
realidade o que a linguagem apreende, mas que não revela. É por isso que a
comunicação entre os seres humanos é sempre mostrada sob um aspecto de
ineficácia no teatro do absurdo. É preciso reduzir a linguagem à sua verdadeira
função. Exprimir um conteúdo verdadeiro, mais que procurá-lo. No teatro do
absurdo apresentamos ao público as personagens onde os móbiles e os actos são
em grande parte incompreensíveis. Com tais personagens é quase impossível de se
identificar. As personagens com as quais o público não se pode identificar são
inevitavelmente cómicas. Este teatro repõe a comédia ou a tragédia e combina o
rir com o horror. As desventuras das personagens, como nós as vemos com um olho
frio, crítico, sem nos identificarmos com elas, são cómicas. As personagens
idiotas, que agem de uma maneira incongruente, querem ser sempre objecto de
riso no circo, no music hall, no teatro. Mas estas personagens cómicas aparecem
geralmente num quadro racional, envoltas de uma personalidade sensível com as
quais o público se pode identificar. No teatro do absurdo a totalidade da acção
é misteriosa, não motivada e à primeira vista, parecendo-se com o nonsense.
Aqui o espectador é confrontado com a loucura da condição humana, ele é
obrigado a ver a sua própria situação na sua desolação e desespero. Tal é a
natureza de toda a literatura de humor negro, onde o teatro do absurdo é o
último exemplo. É o mal causado pela presença de ilusões que não têm qualquer
correspondência com a realidade, realidade que se dissolve e desaparece na
gargalhada libertina, que logo reconhece a insensatez do universo. O teatro do
absurdo nasceu essencialmente com a evocação de imagens poéticas concretas, que
deviam comunicar ao público o sentimento de perplexidade dos seus autores
confrontados com a condição humana. Podemos julgar o sucesso das suas obras com
o grau com que eles conseguiram comunicar o seu misto de poesia, de grotesco e
de horror tragicómico. Os critérios de perfeição não têm somente a qualidade de
invenção, na sua complexidade de imagens poéticas seleccionadas e adaptadas,
mas também, e essencialmente, a possibilidade de encarnar na visão dessas
imagens a realidade e a verdade. A liberdade de invenção, da espontaneidade no
teatro do absurdo, tem por objectivo comunicar uma experiência real, tentando
ser honesto e descomprometido ao expor corajosamente a realidade da condição
humana. Ao se aproximar de uma verdade metafísica, o teatro do absurdo
aproxima-se então do domínio metafísico e do domínio religioso.
Em última análise, um fenómeno como o teatro do absurdo não reflecte o
desespero nem um retorno às forças obscuras do irracional, mas exprime os
esforços do homem moderno em se adaptar ao mundo onde ele vive. Ele tende a
confrontar-se com a condição humana, obrigando-o a libertar-se de ilusões que,
inevitavelmente, o conduzem a ser constantemente inadaptado. Há no nosso mundo
pressões consideráveis para levar a humanidade a suportar o dogma religioso e
moral, propondo-lhe esquecer, recorrendo, de forma iníqua, a espectáculos
medíocres de satisfação imediata, teorizações e axiologias da realidade que
alimentam, paulatinamente, o homem. Nos nossos dias, em que a morte e o
envelhecimento são cada vez mais escamoteados, o auxílio ao eufemismo e ao
conforto infantis são uma constante, por isso ouvimos, às vezes distante, o
grito do homem no sopé da montanha, o grito desnorteado. Ele exige reflexão
para encontrar o seu centro, sem ilusões e rindo. E é sem receios, quase de
forma donquixotista, que os autores do absurdo se lançam inesperadamente.
Sofia
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